domingo, agosto 29

Meninos Carreirinhos de Urucuia

Acabei de assistir na Rede Globo - programa Globo Rural. Parabéns pela reportagem, e obrigado por começar o domingo com alguma coisa inteligente e honesta!


Conheça os meninos que andam pra cima e pra baixo com uma miniatura de carro de boi. Eles gostam de brincar de trabalhar.

Transportam coisas para os pais e avós, preenchendo a infância não só com brincadeiras, mas também afazeres e obrigações.

O trabalho infantil é condenável e proibido por lei. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que está completando vinte anos, veda até o aprendizado em condições insalubres e perigosas.

Mas será que isso significa que as crianças não devem fazer nada? Até que ponto um menino pode ajudar a família nos serviços domésticos? Em Minas, eu encontrei um pai que educa os filhos transmitindo um ofício, orientando as tarefas. Conheça os carreirinhos de Urucuia.

Bonito, poético ou precário? O que você acha do velho carro de boi, na lida, assim? No Brasil de hoje, ainda há mais de um milhão deles em ação. Para muitos, é a imagem do atraso.

E se os seus filhos quisessem carrear? Pois, esses três meninos ganharam o que chamam de carrinho de bode. E passam todo o tempo que podem pra cima e pra baixo, carregando coisas. Preenchendo a infância não só com brincadeiras mas também com afazeres e obrigações.

Nos encontramos estes carreirinhos durante uma reportagem que fazíamos sobre as veredas do norte de Minas, região que o escritor Guimarães Rosa, imortalizou como Grande Sertão. Viajando pelo município de Urucuia cruzamos os carreiros em miniatura. Uma cena que faria qualquer um parara para tirar uma fotografia.

Tiago tem cinco anos. Ranael, nove, e Lucas, doze. Vivem na zona rural de Urucuia, norte de Minas, quase divisa com Goiás, mais perto de Brasília que de Belo Horizonte.
A propriedade da família deles fica na ponta de uma vereda, onde crescem os buritizais.

Miguel Durães, entre outras coisas, é carreiro. Faz carreto de tudo, como de lenha. Pra ele e pros vizinhos. Aliás, pra ele mesmo, pouco: os meninos já dão conta desta e de outras tarefas.

Miguel cuida do corte. Vai lenhando o mato e empilha na beira da estrada. Lucas e Ranael, quase sempre também contando com a companhia do primo Celsinho, fazem o carregamento do carrinho de bode. Tiago, o caçulinha da turma, se senta na canga pra servir de breque.

Lucas, o mais velho, é o que tem mais experiência na condução. Vai na guia, orientando as juntas pelo caminho. Os outros pegam carona sobre a carga.

Ao passar por um desnível do terreno o carro trava na subidinha. Nada sério. É só dar uma empurradinha. A viagem de volta não tem demora. Coisa de vinte minutos já estão chegando à casa. Erinilva vem encontrar os meninos pra agradecer a ajuda.

”Eles sempre pegam lenha, não falta para cozinhar. Eles não reclama, é uma brincadeira deles”, explica Erinilva.

Tarefa cumprida, Lucas leva as juntas para o pastinho perto da represa, toma um gole d´água junto com os outros. E não demora, vai repetir a tarefa. Num outro momento ele já está, acompanhado de Ranael, na casa ao lado onde vive a avó, a quem chamam de “mãinha”. Por sua vez, chama Ranael de “bebê”.

Um esclarecimento importante: você que mora em cidade, comunga dos conceitos urbanos sobre como educar os filhos, talvez se incomode com as cenas de algumas atividades dos carreirinhos e Urucuia. Pode relaxar, deixe um pouco de lado a preocupação com trabalho infantil, exploração de menores. No final, quem sabe, a gente tenha novos ou velhos argumentos sobre o que uma criança deve ou não, pode ou não fazer.

Mais talvez do que, na capital, uma criança da classe média vai ao shopping, aqui
eles vêm se banhar na vereda. Um festival de cambalhotas. Encarapitados nas costas
do pai, vão conhecer as partes mais funda dos poços.

Em dias de calor, hora boa é a de enfiar a cara na ducha que cai da roda d´água. “Quando esquenta eles vem pra cá, uma duas vexzes por semana. Mas eu sempre venho com eles, e quando eu não posso a mãe deles vem. De vez eles reclamam de fazer algumas coisa, mas é difícil. Bater não adianta, porque a coisa que eu mais detesto no mundo é ver um pai ou uma mãe encostar no filho pra bater”, diz.

A mesma naturalidade que têm pra acompanhar o pai na diversão, os meninos
apresentam para seguir Miguel em muitos momentos de trabalho. Miguel sai pra carrear, eles não perdem a oportunidade de uma lição extra.

Numa limpa do mandiocal, podem ser vistos manejando as ferramentas também.
Lucas com a enxada, ranael com o enxadão. Uma pra capinar o matinho leve;
o outro pra arrancar moita, cavar mais fundo no chão.

Os meninos chamam o Miguel de pai, mas houve um tempo em que o mais apropriado era chamar de mãe também. Hoje, Miguel é casado com a Erinilva, com quem teve o Thiago, o caçula. O Ranael e o Lucas ficaram órfãos bem pequenininhos.

Noêmia morreu de calazar, a leishmaniose. Ela foi diagnosticada tarde demais quando a doença já tinha atacado os órgãos. Miguel conta que a família da falecida queria ficar com os meninos, mas ele achou que sozinho podia dar conta de criar os dois.

Vem desse tempo o gosto dos meninos por montaria. Cavalo, pra eles, é sinônimo de brinquedo, de diversão solta, tourear o desafio, dar empinadinha. De cortar caminho por dentro da lagoa, meter o bicho n´água pra sentir o bicho nadar.

Mas cavalo também é sinônimo de serviço. Na hora de recolher o gado, os meninos ajudam a campear. Fazem um cerco conforme a orientação do pai.

Voltando ao fio da meada, seis anos atrás, Miguel se casou com a Erinilva. Ela abraçou a criação dos três. “O nosso relacionamento antes e hoje... a gente se dá bem, porque eles me respeitam como se eu fosse mãe deles e eu também considero eles como se fossem meus próprios filhos”, diz.

Ao sistema do Miguel, Erinilva veio acrescentar regras e rotina. Por exemplo, todo o fim de tarde, depois do banho tomado a meninada tem que fazer a lição de casa.

A rotina dos carreirinhos de Miguel começa cedo. Äs seis da manhã, já acordaram, tomaram café, se arrumaram e deixam a casa para irem à pé até a estrada onde passa o ônibus escolar de Urucuia.

Eles fazem parte do programa de transporte que pega os alunos, mesmo os das propriedades mais remotas, e os leva para uma escola central. A deles, no caso, ainda
fica distante uma hora da cidade. Tem quatrocentos estudantes. Lucas, está na sexta série, e Ranael na terceira.

Sobre o desenvolvimento escolar deles, ouça a avaliação da diretora Elizane Resende. “São alunos disciplinados, são bons alunos, não temos problemas com eles”, diz.

Por volta de uma da tarde, Lucas e Ranael já estão em casa. Vem almoçados da escola. Mal tiram o uniforme e já começam a brincadeira com o carrinho de bode. Nós estamos falando carrinho de bode, mas você que é do ramo e conhece sabe que o que está sendo atrelado são carneiros. É que originalmente havia uma junta de bode, Rochedo e Remanso. Rochedo virou janta e não foi da família.

“A onça comeu o Brilhante, ficou só o Brilhoso. Aí de pois passou muito tempo e a onça passou aqui de novo e comeu o Rochedo e ficou só o Remanso”.

O Remanso continua por aqui, fora do carreio, pois não tem mais par. Está com a cabritata que se forma outra vez. Quem conta a história da onça é o Thalisson, primo mais velho, criado que nem eles, e que, na ausência do Miguel, também ensina os meninos, principalmente a carrear. Como um instrutor de auto-escola sai pra estrada dando aulas de condução.

Menino tem esse condão de fazer brincadeira virar coisa séria e obrigação virar diversão. Ao longo da semana que passamos com eles, os vi entretidos nas
mais variadas tarefas. É no carrinho que beiram a cerca do chiqueiro para
dar o trato aos porcos. Brinquedo, brinquedo mesmo, um ou outro, eles também
têm. Mas, os vi pulando os briquedinhos comuns para águar a horta de “mãinha”.

Restos de carrinhos servindo de trave para um futebolzinho animado. Martelinho quicando no toco para triturar o grão de milho – é assim que preparam a quirera
pros pintinhos.

Mãozinhas firmes debulhando milho para servir o galinheiro. Mãozinhas nos tetos aprendendo a ordenhar a vaquinha. Vi a farra no curral, menino fazendo de conta que é peão. Compenetrado, sentadinho no banco, no be-a-bá da religião. Vi Lucas pronto a repartir o que tem com os irmãos.

Na despedida, eu tento conversar com Miguel sobre a filosofia da criação. Mas, ele diz
que, aqui, não tem disso, não. “Futuramente eu quero que eles terminem os estudos deles, quando eles forem maior, se eles quiserem ir morar na cidade, procurar um emprego tudo bem, mas se eles quiserem continuar aqui, estão preparados”, afirma o pai.

É lógico: eu perguntei a eles o que querem ser quando crescerem. Tiago, o caçula, ainda não sabe; Lucas, o mais velho quer ser veterinário. O Ranael, do meio, de boca cheia, falou que quer ser vaqueiro.

www.globo.com/globorural
post EdynhoSaez

Nenhum comentário:

Postar um comentário

e ai gostou? Como assim?